quinta-feira, abril 16, 2015

O grande sertão da misoginia
Quando se trata de respeito pelas mulheres, o Brasil é uma catedral do atraso. As leis são boas, mas os costumes são medonhos.


Até ontem, eu não sabia da existência da dupla sertaneja Max e Mariano. Ninguém sabia, na verdade. Os dois saltaram de Goiás para a infâmia nacional na semana passada, com o clipe de uma música chamada “Eu vou jogar na internet”. A letra da música explica a confusão em que se meteram:

Semana passada mesmo a gente ficou. E, sem que você percebesse, eu gravei de nós dois um vídeo de amor. Eu vou jogar na internet, nem que você me processe. Eu quero ver a sua cara quando alguém te mostrar, quero ver você dizer que não me conhece”.

A tempestade que caiu sobre a cabeça enchapelada dos apologistas do crime nos dá alguma esperança no Brasil, mas é pequena. Embora eles tenham sido massacrados nas redes sociais e lembrados até no Congresso – onde o senador Romário defende a criação de uma lei específica contra a exposição da intimidade alheia na internet – eu não tenho dúvida que no grande sertão da misoginia onde esses caras brotaram há muito mais gente que pensa como eles, homens e mulheres capazes de cometer de alma leve o crime que eles celebram e incentivam com a sua música ruim.

Quando se trata de respeito e consideração pelas mulheres, o Brasil é uma catedral do atraso. Algumas leis são bacanas, mas os costumes são medonhos.

Outro dia, uma moça que eu conheço quase foi agredida numa balada por se recusar a conversar com um sujeito que achara ela bonita. O cara a agarrou pelo braço e teve de ser afastado por outros homens, depois de enfrentar as amigas dela que tentavam expulsá-lo. Isso é um exemplo de conduta criminosa tristemente comum.

Depois de duas latas de cerveja, jovens da melhor classe média brasileira sentem que podem se impor fisicamente às mulheres que desejam. Passam a mão, puxam o cabelo, agarram. Alguns insultam e dão porrada quando recusados. Como esse tipo de comportamento não brota do nada, deve haver gente ao redor deles dando exemplo - ou sendo leniente com seus meninos.

Por isso eu acho a cultura brasileira misógina: o comportamento escroto em relação às mulheres é socialmente tolerado em todas as classes sociais e geografias, embora em toda parte seja coisa de minoria.
No caso da moça que eu conheço, havia por perto homens dispostos a correr o risco de enfrentar o marginal e defendê-la. Nem sempre esse tipo de cavalheirismo e de coragem estão disponíveis. Os canalhas frequentemente saem impunes de agressões públicas contra as mulheres, quando deveriam ser retirados sob escolta do local, levados à delegacia e indiciados como agressores sexuais.

Agarrar uma mulher estranha pelo braço e tentar forçá-la ao que quer que seja  - “Me dá um beijo, senão eu não te largo!” - é uma forma de agressão sexual. Comprovada na justiça, ela deveria ficar na ficha policial do jovem musculoso para que seus futuros empregadores saibam como ele pode ser obstinado.

Mas eu me distanciei do caso dos sertanejos misóginos.

Ele me faz lembrar outra história macabra que ouvi outro dia: uma estudante paulistana vem sendo assediada há meses na internet, sem que a polícia ou a justiça, informadas, se movam para defendê-la. Alguém roubou fotos dela no Facebook, misturou com filmes pornôs variados de moças que vagamente se parecem com ela, e, com esse material apócrifo, criou um site – cujo link passou a distribuir entre os amigos dela no Facebook, acompanhado de comentários picantes.

Ao dar queixa na delegacia do bairro, a estudante foi tratada com curiosidade divertida e libidinosa por um bando de policiais – “Mas você se deixou filmar nua, não foi?”. Ela tampouco conseguiu ajuda da Delegacia da Mulher, que não cuida desse tipo de crime, segundo lhe disseram. Na delegacia de crimes digitais, soube que só atendem fraudes financeiras. Foi acolhida no Ministério Público, mas ainda assim a ação não anda. Sem autorização de um juiz, não se inicia a investigação oficial que obrigaria o Facebook a identificar o computador de onde partem as agressões. Um advogado poderia apressar o caso, mas custaria sete mil reais, que ela não tem. Enquanto isso, o criminoso ou criminosa manda mensagens periódicas se gabando de tê-la nas mãos, à mercê dos seus impulsos patológicos.

Que tipo de sociedade produz esse tipo de gente? Que tipo de instituições permitem que continuem agindo impunemente por tanto tempo?

A resposta é simples: a mesma sociedade em que uma dupla sertaneja grava uma música incentivando o pornô de vingança. A mesma em que moleques mimados agridem as garotas impunemente. A mesma em que o machismo prolifera, insidioso, na forma de um profundo e ostensivo desrespeito pelos direitos mais elementares das mulheres: andar na rua sem ser incomodada, estar sozinha em público sem ser abordada, dançar com as amigas sem ser agarrada, dizer não sem ser agredida ou morta. Falamos do Brasil, naturalmente.

IVAN MARTINS

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