Da primeira vez, ele contou 98 carros. Vestido, de banho tomado, esperava uma ligação para sair em seguida. Da janela, via e ouvia o viaduto que era seu vizinho. O trânsito estava livre. Um, dois, três, quatro carros. Trinta e um, trinta e dois, trinta e três. Alguns passavam tão rápido e tão próximos uns dos outros que era difícil contar. Duas vezes, ele teve dúvida se tinha perdido algum. Quando chegou ao 96, o telefone tocou. Contou mais dois e foi atender.
Três dias depois, no começo da noite, Antônio voltou à janela. Na praça em frente ao prédio, um bêbado gritava. Ele olhou para baixo, viu o homem deitado no banco, gesticulando, e, à direita, o viaduto. Já tinha jantado um sanduíche de presunto e queijo prato, ido ao banheiro, tomado banho. Podia contar até 100.
Foi até 150 no dia seguinte. Duzentos no outro. Duzentos e quinze. Sempre à noite. Latinha de cerveja no parapeito, sentado em uma cadeira ao lado da cama, começava a contagem. Duzentos e trinta e dois. Duzentos e quarenta e seis. Duzentos e cinquenta. Bebia devagar, pra cerveja durar, sem tirar o olho da pista.
Os domingos tinham ainda mais cara de domingo porque o viaduto fechava. No asfalto, famílias passeavam, esportistas corriam, cachorros latiam. Ele trancava a janela, ligava a TV, bebia mais. Saía, às vezes, para ir à padaria, ao parque, ao mercado ou à boate. Nunca subia a rampa do viaduto, onde ambulantes aproveitavam o movimento de pedestres para vender pipoca, cerveja e cheetos.
Uma segunda-feira, depois do domingo vazio, foi para a janela ainda antes do trabalho. De manhã, os carros eram diferentes, pois seus ocupantes tinham rosto. No trânsito quase parado, perdeu a conta e recomeçou várias vezes. Saiu tarde, irritado.
Costumava ser o primeiro a chegar e ficava encostado na porta de ferro até o gerente aparecer, mas nesse dia a loja já estava aberta quando Antônio virou a esquina da estação de metrô. Guardou a mochila no depósito, trocou de camisa e se colocou ao lado dos outros dois vendedores que já esperavam clientes.
Fim de mês, vendeu pouco: duas camisas, quatro calças, uma gravata, sete pares de meia em promoção. Comprou um pacote de três cuecas. Pelo menos chegou rápido em casa e pôde se preparar com calma para a janela. Colocou no congelador as cervejas que comprou no boteco ao lado do prédio, esquentou um resto da comida chinesa, comeu duas mexericas e tomou banho.
Tinha tempo até o viaduto fechar, às 9h30 da noite. Pegou quatro latinhas e deixou num isopor no chão, ao lado da cadeira. O trânsito fluía bem, um bafo quente entrava pela janela, o isopor mantinha a cerveja gelada. Sorriu satisfeito quando chegou ao milésimo carro. Mas percebeu que logo chegaria a um limite. Precisava de um método e de desafios: cada vez, somaria mais dez; quando perdesse a conta, jogaria o número para baixo; só faria contagens noturnas. E assim foi. Seguindo as próprias regras, chegou a 10.800 em uma noite.
Há três anos, Antônio passa pelo menos uma hora na janela do quinto andar do prédio amarelo. Toda noite, conta milhares de carros. Mas quase ninguém vê.
Mariana Weber
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