quarta-feira, dezembro 09, 2015

Ladrões de sentimentos


Roberto Carlos cantava assim: estou amando loucamente/ a namoradinha de um amigo meu. A música é de 1966, mas a situação ainda se repete. Tem gente que adora se apaixonar pelo amor dos outros, ex ou atual. A pessoa se sente atraída por quem vem marcado com o sinal de posse alheio, preferencialmente de gente conhecida. Vocês conhecem alguém assim? Eu conheço um monte. Acho, na verdade, que todos somos ladrões potenciais de sentimentos alheios. É só uma questão de circunstâncias.

Sempre que converso sobre isso escuto frases peremptórias. As pessoas dizem, sem titubear, que jamais ficaram com ex ou com o atual de qualquer amiga ou amigo. Jura? Nunca tentou nem teve vontade? Acho difícil. As relações humanas se dão em grupos pequenos. Quem nunca se interessou pelo parceiro de alguém do bando? Quanto mais estável o grupo, quanto mais intensas as suas relações, quanto mais frequente o contato, maior a chance de que os interesses afetivos se misturem e se sobreponham.

Olhe os grupos de adolescentes: todo mundo se envolve com todo mundo. E não acontece só com eles. Dos 14 anos aos 24 e aos 34 anos as coisas são assim. O advento dos casamentos torna as relações mais rígidas, mas não inteiramente impenetráveis. Também no grupo dos casados o intercâmbio dos afetos continua a ser praticado, embora de forma sublimada. Às vezes, clandestina. Deve ser uma característica humana. A gente deseja o que está perto. A gente deseja o que o outro tem ou teve. A gente deseja o que não deveria desejar.

Talvez por desejar tanto, erguemos barreiras para nos afastar do que queremos. A principal delas é a moral do grupo. Pega mal ficar com o namorado ou ex namorado dos outros. A cultura feminina é particularmente sensível a isso. As mulheres isolam como doente a mulher que seduz ou parece seduzir os homens alheios. Inclusive ex homens alheios. As duas coisas são percebidas como ameaça, porque provocam dor. Tabus são criados para tentar evitar que as pessoas invadam a seara emocional alheia, mas não adianta. Elas invadem assim mesmo. Tomam o amor do outro, dividem o amor do outro, cobiçam o amor do outro. Se aproximam do ex-amor dos outros, machucando quem ficou para trás.

Falo disso com naturalidade, mas não acho esse comportamento louvável e nem sou imune às suas consequências. Já fui ferido por essas trocas. Já feri também. Mas percebo na minha reação sentimentos injustificáveis. Egoísmo é um deles. Vaidade é outro. Talvez eu preferisse que as mulheres que eu amei nunca mais se metessem com outro homem. Enquanto eu ainda sentisse algo por elas, ao menos. Durante esse período de anos, elas poderiam se relacionar – quem sabe - com gente de outra cidade ou de outro país, para que eu não me sentisse incomodado com comparações. Nunca, jamais, em tempo algum se apaixonariam por um amigo meu. É simplesmente intolerável quando uma mulher de quem você gostou – ou ainda gosta, meu deus! – entra pela porta da sala no braço de um amigo. Pior ainda se for aquele tipo com quem você afetuosamente compete. A vontade é nunca mais olhar na cara do sujeito. Ou dela. Mas, francamente, com que direito?

Estou misturando propositalmente situações distintas: gente que sai com o seu ex não faz o mesmo papel que gente que sai com o seu namorado. Socialmente e eticamente não é a mesma coisa, mas emocionalmente pode ser. E frequentemente é. Você não pode sair berrando “Traição!!!” se a sua amiga fica com o cara que acabou de te dar o fora. Mas a dor que você sente é igualzinha – ou talvez pior, porque você não está na posição moralmente superior de quem foi enganada. Não dá para vestir o manto branco das vítimas inocentes. Não dá para esconder o desespero com a peneira da indignação. Quem é dispensado e substituído dessa forma dolorosa pode gemer sua revolta com os amigos, mas não tem plateia para gritar publicamente. Não parece uma coisa razoável.

Eu gostaria de saber o que leva algumas pessoas a agirem sempre assim, tomando para si as coisas que pertencem ou pertenceram aos outros. Que aconteça uma ou outra vez, pode ser inevitável. Quando vira rotina não é bom sinal. Fica a impressão que o objeto do desejo é menos importante do que a procedência dele. É preciso que outra pessoa indique – com o afeto e a atração dele – alguém que valha a pena ser conquistado. Ou pode ser inveja pura e simples que leva a desejar o que é do outro. A inveja é muito forte em nós e nem sempre somos capazes de admitir o sentimento, porque ele se mistura com as nossas sensações sombrias de inferioridade. Aquela mulher sozinha seria atraente ou ela se torna atraente apenas na companhia de um amigo de quem invejamos a aparência, o temperamento ou o sucesso? Acho difícil responder a essas perguntas. Como já disse um autor consagrado, é preciso mais do que apenas sinceridade para falar sobre os próprios sentimentos.

O que eu sei por observação direta é que as pessoas mudam. Elas não ficam obcecadas pela grama do vizinho para sempre. Esses são comportamentos da juventude, necessidades de experimentação e afirmação passageiras. São confusões emocionais que se esclarecem com os anos. Uma hora a pessoa sossega e acha o seu próprio caminho. Por saber disso, por já ter presenciados transformações, acredito que o nosso julgamento nesses casos não deve ser tão severo. Sabemos intimamente que somos sujeitos às mesmas tentações e que talvez não resistíssemos se a porta nos fosse aberta. No mínimo, é importante lembrar que a culpa de quem nos machuca deve ser dividida por dois. Para cada amigo que ignora os nossos sentimentos há uma ex que se entrega feliz aos cuidados dele. Ou o mundo está repleto de culpados ou somos todos mais ou menos inocentes.

IVAN MARTINS