quinta-feira, dezembro 18, 2014

A graça do amor


Na China antiga, quando as coisas começavam a dar errado em larga escala, concluíam que o governo perdera a graça do Céu. Era uma forma peculiar e mística de democracia. Funcionava. Permitia a remoção de imperadores desastrados ou azarados demais.

Outro dia, movido pela comoção do Natal, percebi que a lógica chinesa tem um equivalente concreto em nossa intimidade, se aplicada ao imperador dos nossos sentimentos: o amor. Sem a graça do amor, nossa vida desmorona, mais ou menos como o império da China sem a graça do Céu. Não se trata de uma conclusão romântica sem fundamento. Ela é baseada em sentimentos concretos e fatos reais.

O amor, como o ar que se respira, é uma substância essencial e invisível da existência. Está lá, um minuto após o outro, desde o instante em que nascemos. Nos mantém vivos. Nos acostumamos a ele. Acreditamos que estará lá quando chegar a noite, como esteve durante a manhã. Mas não é certo. O amor, assim como o ar, pode faltar de um minuto para o outro. A simples ameaça de que isso aconteça esvazia a vida, abre um abismo diante de nós, nos lança nos braços da calamidade.

Num romance que comecei a ler esta semana – A balada de Adam Henry, de Ian McEwan – há um diálogo, nas páginas iniciais, em que a personagem principal tem de escolher entre aceitar uma terrível humilhação imposta a ela pelo marido ou perdê-lo, definitivamente. Ao longo da conversa, os sentimentos dela se alternam entre pavor e ira, medo e indignação. No mesmo instante em que decide que algo é intolerável, enxerga o futuro sem o marido – e o futuro lhe parece insuportável.

Não sei qual decisão prevalecerá na ficção. Todos conhecem esse dilema na vida real. Em certas circunstâncias, em determinadas conversas, o orgulho, e mesmo a racionalidade, aconselham que se dê fim a tudo. O medo entra então em cena e pergunta: o que é a vida sem amor? Não há quem não hesite. Mesmo no escuro, é possível enxergar uma esperança.

A graça do Céu e a graça do amor oferecem paz.

Essa palavra surrada, gasta, corrompida pela publicidade e pelas pombas brancas dos cartões de Natal, descreve uma situação concreta, em que as coisas do mundo parecem ter ordenamento, e nossos sentimentos encontram eco nos sentimentos do outro. Temos queixas, nem tudo transcorre como gostaríamos, mas, feitas as contas, estamos tão contentes quanto possível num mundo imperfeito. Quando se perde a graça, isso desmorona. O outro se distancia, e as coisas do mundo perdem o sentido. Uma inquietação dolorosa invade o cotidiano. A noite se torna imensa, a luz da manhã, distante. Onde se escondeu o contentamento? Cadê o sentido das coisas que aquele abraço continha? A paz se foi.

O Natal está chegando, como todo ano. Nas ruas das nossas cidades, sem neve e sem frio – talvez sem água –, milhões andarão em busca de presentes, tentarão capturar numa caixinha um gesto de carinho. Entre eles, andarão como zumbis os que perderam a graça do amor. Eles farão compras, darão bom dia, conversarão com os vizinhos e se sentarão para tomar café com os colegas de trabalho. Haverá neles, porém, um buraquinho, como o furo microscópico de um pneu ou de uma bola, que deixa o ar escapar e leva o alento e a vida. É possível viver assim, com o barulhinho quase inaudível do ar fugindo e da alegria escapando – mas é triste.

Neste Natal quero pedir de volta a graça do amor. Para todos os que a perderam. Que ela volte como um raio de luz num prado escuro, subitamente. Ou que vá chegando de mansinho, como um sono tranquilo. Que ela retorne pela troca de palavras ou que volte pisando com os pés descalços, em silêncio. Não faz diferença. O importante é que leve embora os dilemas insolúveis, que remova o vazio do futuro, que ofereça, como um corpo ansioso e disponível, a dádiva da paixão – aquela que resgata homens e mulheres do abismo da indiferença. Que a graça do amor, ao retornar, devolva tudo o que lá estava antes, sobretudo os sonhos. Eles, sobretudo. Que venha com ela também a graça do Céu, aquela antiga dos chineses, porque dessa, aqui no Brasil, também precisamos.

IVAN MARTINS - ÉPOCA

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